Bebia chocolate, usava casacos bordados a ouro e tinha representantes em todas as cortes para estar a par da moda. Durante o seu longo reinado o estado recebeu 57 toneladas de ouro.
D. João V tinha empregados para todas as funções. Quem o vestia era o camareiro-mor, D. António Caetano de Sousa. Antes disso já o moço das chaves tinha aberto as arcas onde estava a roupa do rei. Sedas, casacos bordados a ouro e prata , “seguramente é o mais rico guarda-roupa do universo”, escreveu nas suas memórias o médico suíço Merveilleux.
O ouro foi descoberto no fim do séc. XVII, mas 1740 foi o ano de maiores remessas. Os escravos faziam o garimpo.
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Depois de vestido, se o rei quisesse sentar-se numa cadeira, cabia ao reposteiro-mor, Afonso de Vasconcelos e Sousa, conde da Calheta, chegar-lhe a dita cadeira e ajeitar a almofada. Acaso o rei decidisse escrever era a função do moço da escrivaninha anotar as suas palavras. Se D. João V tivesse sede, a função competia a dois copeiros. O copeiro-mor recebia a água do copeiro pequeno, depois despejava um pouco numa salva de prata para a provar antes de o rei a poder beber. Nem as refeições eram um ato singelo. O trinchante-mor cortava as iguarias para o rei depois de um dos veadores ter examinado tudo ao detalhe. E podiam ser 21 pratos diferentes.
O Rei-Sol português , que imitava o famoso monarca francês, Luís XIV até nas poses dos retratos e que enviava emissários às cortes europeias, até à longínqua Rússia, para saber o que se vestia e como se comportavam , era o exemplo do monarca absoluto. Descrito como autoritário, viveu a época áurea do ouro do Brasil. Será durante o seu reinado que as maiores remessas chegam a Portugal e é também nessa época que se descobrem os diamantes.
Por vezes, a confiança era tanta que, como retrata a historiadora Maria Beatriz Nizza da Silva na biografia D. João V, os roubos não incomodavam muito. Uma baixela em prata, anéis de diamantes da Rainha D. Maria Ana ou um serviço de mesa em ouro, por exemplo, nunca foram recuperados. Um dos membros da corte, o conde de Povolide, descrevia o ambiente: “Não se pedia a ninguém conta de nada”, lê-se na biografia.
O historiador João Paulo Oliveira e Costa defende que a maioria do ouro foi usado para construir o Brasil.
Sérgio Lemos/Sábado
Mas não era só aqui que existia alguma falta de cuidado. Quando o médico suíço Charles Merveilleux visitou a Casa da Moeda, em Lisboa, ficou surpreendido com o desperdício de ouro que ficava agarrado aos instrumentos oficiais quando se faziam moedas e que não era usado.
Descoberto em 1699, durante o reinado de D. Pedro II , pai de D. João V ,, o ouro do Brasil mudou o reino. Mas será com D. João V, e depois com o seu filho, o rei D. José, que aumentam substancialmente as remessas. O historiador José Hermano Saraiva questionava, no seu programa na RTP, para onde tinha ido o ouro e os diamantes do Brasil? A ideia que ficou era que D. João V o tinha esbanjado. O académico argumentava que se tinha perdido o rasto ao ouro com o grande número de importações de bens para a corte (móveis, quadros, esculturas, joias, o País quase não tinha produção) e com a corrupção que existia nos portos e nas alfândegas. No entanto, hoje é possível ter mais certezas.
As investigadoras Leonor Freire Costa, Maria Manuela Rocha e Rita Martins de Sousa, do Gabinete de História Económica e Social, do Instituto Superior de Economia e Gestão da Universidade de Lisboa, analisaram os registos das remessas de ouro que chegaram a Lisboa entre 1720 e 1807 e as conclusões são surpreendentes. No livro O Ouro do Brasil, editado pela Imprensa Nacional Casa da Moeda, ficamos a conhecer os Livros de Manifestos. Nestes cadernos eram registadas todas as remessas de ouro que chegavam a Lisboa , quantidade, tipo de mercadoria, quem a enviava e a quem se destinava. O Estado cobrava 1% destas remessas e garantia , através das suas naus armadas , que chegavam a Portugal em segurança. “Concluímos que mais de 70% das remessas de ouro que chegaram a Lisboa eram para privados, ou seja, não corresponde à ideia de que era tudo para o rei”, diz à SÁBADO a professora Leonor Freire Costa.
Os frutos da paz
Durante o reinado de D. João V, os cofres do Estado receberam 57 toneladas de ouro e para os privados chegaram a Lisboa outras 235. “As remessas destinavam-se a empresários e também a membros da Igreja. São os emigrantes que enviam o ouro. Claro que estes particulares poderão ter enriquecido, mas não terão investido em atividade industrial, porque à época isso não existia em Portugal”, acrescenta Leonor Freire Costa.
O historiador João Paulo Oliveira e Costa clarifica outro detalhe que põe em causa o mito de que D. João V desperdiçou quantias faraónicas. “O Brasil era um território inóspito, onde viviam 300 mil indivíduos em cidades de madeira. Portanto, é o ouro que permite que se abram estradas e se criem cidades. O ouro flui para cá, mas também construiu o Brasil”, defende o professor da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, da Universidade Nova de Lisboa.
“Um francês queixava-se que tudo o que é escultor nesta terra está a trabalhar para o rei de Portugal ”
É certo que os cofres estavam mais recheados, sobretudo porque o rei herdou um País que tinha vindo de uma guerra. “Portugal gastou muito dinheiro com a guerra da sucessão espanhola e escolhemos o lado do perdedor”, explica João Paulo Oliveira e Costa. Contudo, depois do Congresso de Utrecht, em 1712, o País passa a viver em paz. Portanto, a missão de D. João V passa a ser colocar Portugal a par dos reinos mais influentes da Europa. “Se foi o rei mais rico de Portugal? É difícil responder. Foi um dos mais ricos, seguramente. Mas não sei qual deles foi o mais rico, se ele ou D. Manuel I [1469-1521]. É que no caso de D. Manuel I, ele tem o ouro da Mina [África] para 1 milhão de pessoas, o D. João V tem o ouro para 5 milhões e está a montar o Brasil”, questiona João Paulo Oliveira e Costa. Contudo, Maria Beatriz Nizza da Silva reforça à SÁBADO que à época “D. João V era dos monarcas mais ricos da Europa, senão o mais.” Em Roma isso era comentado.
Banheira em prata dourada
A obra mais emblemática do seu reinado será o Palácio e Convento de Mafra e o investimento era tanto que em Roma os escultores não aceitavam mais trabalho. “Portugal como um país que tem à sua frente um soberano que se interessa particularmente pelas questões da arte e da cultura, torna-se um grande encomendador. Há um episódio curioso que retrata isso. Um francês queria mandar fazer um busto em mármore em Roma, e escreve ao seu compatriota em Paris, dizendo que não é possível: Porque tudo o que é escultor nesta terra está a trabalhar para o rei de Portugal. Havia, de facto, um grande investimento. O palácio de Mafra vai ter cerca de seis dezenas de esculturas de mármore italianas , só comparável à Basílica de São Pedro [Vaticano]”, esclarece à SÁBADO a historiadora de arte Teresa Leonor M. Vale. “D. João V quer afirmar Portugal como uma grande potência católica, mas também como um país que investe em arte”, acrescenta a professora da Universidade de Lisboa e investigadora do ARTIS , Instituto de História da Arte.
O Rei D. João V a tomar chocolate, na casa do duque de Lafões, em 1720. “O café e o chocolate ganham grande expressão nos momentos de refeição em Portugal”, diz Guida Cândido.
DR
E esta aposta era tanto no exterior como na vida privada. Um dos luxos mais debatidos é uma banheira em prata dourada que pesava 100 kg, com os pés em forma de golfinho e ornamentada com sereias e um Neptuno empunhando um tridente.
Reza a lenda , porque na vida de D. João V o mito e a verdade andam de mãos dadas , que a encomendou para Madre Paula, sua amante. Os investigadores questionaram a sua existência, até como exemplo das más-línguas que caricaturavam o rei no séc. XIX. Contudo, a historiadora de arte Teresa Leonor M. Vale esclarece tudo. “Podemos afirmar taxativamente que foi encomendada uma banheira assim, como foram encomendadas outras peças de prata, ao ourives Paul Crespin, em Londres, através do agente diplomático António Galvão Castelo Branco. As cartas trocadas assim o provam. Contudo, nada nos diz que fosse para a Madre Paula”, explica. “É uma banheira em prata dourada, com decoração escultórica e sabemos que tinha um Neptuno. Ela chegou a Lisboa e, pessoalmente, acho que era para o rei.”
Luxo à mesa
A gastronomia também era ostentação. O banquete de casamento do rei , com festas que duraram vários dias, com fogo de artifício, bailes, touradas e música , foi exemplo disso. Foram servidas 84 iguarias diferentes, descreve Guida Cândido no livro Comer como uma Rainha. Mas os luxos à mesa eram o dia a dia. O séc. XVIII é considerado o “século de ouro da doçaria portuguesa”, diz à SÁBADO a professora da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra (FLUC). E as bebidas que estavam na moda em Paris, desde o final do século XVII, como o café, o chá e o chocolate, fazem parte da corte. “Durante o reinado de D. João V, verifica-se um relativo crescimento no consumo de tais bebidas, ao ponto de o próprio rei ser retratado enquanto lhe é servido uma bebida de chocolate”, diz Guida Cândido.
O luxo, apesar de criticado no séc. XIX, tinha uma função , “era a forma de assegurar o poder do rei”, conclui João Paulo Oliveira e Costa.
Moeda
Em 1722 são criadas novas moedas de ouro. A Casa da Moeda ganha grande destaque durante o reinado de D. João V
Encontrados no cascalho do rio no Serro Frio, em Minas Gerais, enquanto procuravam ouro. D. Lourenço de Almeida, governador, só avisou a Coroa em 1729. As remessas eram tantas que o preço dos diamantes na Europa baixou, refere a historiadora Maria Beatriz Nizza da Silva. Havia pedras de 26 quilates, mas a maioria era abaixo de 12.
Chefs?
O rei teve vários cozinheiros, como Vincent La Chapelle, que editou The Modern Cook com uma receita de caril à indiana, influência portuguesa.
Vanda Marques
Há 28 minutos