O homem que "inesperadamente" não ganhou a Cavaco
19-02-2023
A vida, em resumo, do “brilhante economista” que avisou Guterres para “as alienações dos grupos portugueses” e que um ano antes da troika perguntava: “o que esconde o governo?”. No congresso que perdeu para Cavaco Silva, em 1985, fez um discurso que marcou a história dos conclaves do PSD: “De Napoleões falsos estão cheios muitos hospícios”. João Salgueiro morreu na sexta-feira aos 88 anos.
Figueira da Foz. 17, 18 e 19 de maio de 1985. João Salgueiro enfrenta Cavaco Silva. Perde por apenas 57 votos. O cavaquismo começa aqui. Mas teria sido assim se Alberto João Jardim não tivesse assinado por outros – “A certa altura, estava-se no limite para a meia-noite, [Cavaco] vem ter comigo e diz que lhe faltam assinaturas, creio que quatro ou cinco. Dê cá isso e assinei por cinco gajos da Madeira. Depois tive que ir ao hotel bater à porta deles: Olha assinei por ti (…) Se amanhã perguntarem se assinaram, digam que sim. E pronto, fez-se” – e ajudado, dessa forma, o homem que viria a ser primeiro-ministro e Presidente da República?
Cavaco Silva recordou, este sábado, um dia depois da morte de João Salgueiro, aos 88 anos, o “algo inesperadamente” cruzar de destinos nesse ano de 1985. Já lhe tinha chamado “fado” ou “destino” e falado da “surpresa geral, incluindo a minha” por “ser eu a ganhar”, depois da “peremptória recusa”. Nesse congresso, após a candidatura de Cavaco [apoiado pelo grupo da Nova Esperança onde militavam Marcelo, Barroso, Júdice e Santana] que defendeu Freitas do Amaral, ex-líder do CDS, como candidato presidencial, ao contrário de Salgueiro [apoiado por defensores do Bloco Central como Mota Amaral] que defendia um candidato do PSD, ficou célebre esta frase do antigo ministro de Balsemão: “De Napoleões falsos estão cheios muitos hospícios (…) Entre o louco e o personagem real, não é o grau de convicção que os distingue. Só que, num caso, a realidade é uma e, no outro, é uma ilusão”.
Américo Tomás, Presidente da República, e João Salgueiro, Subsecretário de Estado do Planeamento Económico. (Arquivo DN)
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“A vida cruzou o meu destino com o de João Salgueiro, algo inesperadamente, no Congresso da Figueira da Foz, em que disputámos a liderança do PSD. Mantive sempre uma boa relação com o Dr. João Salgueiro, beneficiando em diferentes momentos dos seus conselhos alicerçados num sólido pensamento económico”, escreveu o antigo presidente. “Um homem que procurou, com os seus conhecimentos de economia e a sua intervenção política e cívica”, sublinhou Cavaco Silva, “ajudar o nosso país a encontrar o rumo certo” [curiosamente o lema das conferências do PSD – “Portugal no Rumo Certo”-, em 2014, que prepararam as legislativas de 2015].
O antigo Presidente fez questão de lembrar a condecoração, a Grã-cruz da Ordem de Cristo, que conferiu ao antigo adversário político, no 10 de Junho de 2010. Em 2021, João Salgueiro foi também condecorado por Marcelo Rebelo de Sousa, com a Grã-cruz da Ordem do Infante D. Henrique, no encerramento do 5.º Congresso da Sedes [Associação para o Desenvolvimento Económico e Social] da qual foi fundador em 1970. Um “ersatz [substituto] tolerado de um partido não permitido”, diria, anos mais tarde, António Barreto.
Francisco Pinto Balsemão, Primeiro-Ministro, reunido com Mota Amaral, João Salgueiro, Conceição e Silva e Viana Baptista (Arquivo DN)
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“Economista brilhante”
Nascido em 1934, em São Paio de Merelim, Braga, João Maurício Fernandes Salgueiro licenciou-se em Economia pelo Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras (ISCEF). Foi no antigo Banco de Fomento Nacional, entre 1959 a 1963, que começou a carreira profissional como economista. Regente ISCEF (atual ISEG), a partir de 1965, assumiu até 1969 a direção do Departamento Central de Planeamento e de secretário técnico da Presidência do Conselho, passando a subsecretário de Estado do Planeamento até 1971 no governo liderado por Marcello Caetano.
Em 1972 passou a presidir à Junta de Investigação Científica e Tecnológica, onde ficou até 1974. Após a revolução do 25 de Abril aderiu ao PSD. Por menos de um ano, até março de 1975, foi vice-governador do Banco de Portugal. Foi presidente do Instituto de Investimento Estrangeiro em 1981 e ministro de Estado e das Finanças e do Plano, entre 1981 e 1983, no governo de Pinto Balsemão [coligação PSD, CDS, PPM] e deputado entre 1983 e 1985 – anos do governo do Bloco central.
João Salgueiro, Ministro de Estado e das Finanças e do Plano, Mário Tomé e Carlos Brito durante a discussão do programa do VIII Governo Constitucional (Arquivo DN)
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Administrador da Caixa Geral de Depósitos, de 1996 a 2000, sai mais cedo assumindo divergências com as opções e “estratégia” do governo de Guterres avisando que com “as alienações dos grupos portugueses, as pessoas vão perceber que se está a subalternizar a posição que as novas gerações vão ter em Portugal. Uma grande parte dos centros de decisão vai desaparecer daqui, os centros de produção vão desaparecer daqui”.
Anos mais tarde, em 2010, com Sócrates, critica o “discurso cor-de-rosa” do governo e diz que é preciso evitar um PEC4 criticando a “baralhada” das contas. A pergunta? “O que esconde o governo para aumentar a dívida 2700 milhões de euros e ir buscar o fundo de pensões da PT?”. A resposta chegaria a 6 de abril de 2011 com a Troika.
João Salgueiro, Presidente Nacional da Juventude Católica e assistente no ISCEF, com o jornalista do DN Fernando Pires (arquivo DN)
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“Portugal perdeu hoje um dos seus mais brilhantes economistas da segunda metade do século XX”, assinalou Marcelo Rebelo de Sousa, que elogia o “papel particularmente importante” de João Salgueiro “no planeamento económico, no nascimento das regiões plano, que viriam a dar origem às CCDR, na tentativa, falhada, de modernização no tempo de Marcello Caetano, no setor bancário público nos anos 70 e 80, no Ministério das Finanças, na liderança de uma das mais importantes sensibilidades dentro do PPD-PSD e, durante 50 anos, na SEDES, de que foi inspirador, presidente e figura tutelar, na transição para a a Democracia e até ao século XXI”.
Luís Montenegro lembra “um homem com invulgar inteligência” e “dedicação à causa pública” que “pensou e fez pensar Portugal”.
Santos Silva, presidente da Assembleia da República, destaca o “economista e político que marcou a vida pública portuguesa do seu tempo (…) Ajudou-nos a pensar os caminhos do nosso desenvolvimento”. “Um dos economistas mais brilhantes que o país já teve (…) desenvolveu sempre a sua visão para o futuro da economia portuguesa”, afirmou o ministro da Economia.
© João Girão / Global Imagens
“Perde o país e perdemos todos, com o falecimento um dos portugueses mais brilhantes das últimas décadas, deixou-nos um Português maior, uma referência e exemplo que procuraremos sempre honrar”, considerou a SEDES.
Num comunicado, a SEDES afirma que a associação “está de luto com a morte de um dos seus fundadores e a sua alma”, adiantando que “humanista e democrata, João Salgueiro era um Patriota sempre ao serviço, tinha um sentido de missão único e uma visão de futuro, por um país mais justo e equitativo”.
A Associação Portuguesa de Bancos enalteceu a vida de João Salgueiro, que faleceu na sexta-feira aos 88 anos, lembrando o presidente do organismo entre 1994 e 2009, como um “ilustre economista e gestor bancário”.
Numa curta nota enviada às redações, a Associação Portuguesa de Bancos (APB) referiu ter sido “com enorme pesar” que tomou conhecimento da morte de João Salgueiro, apresentando as suas condolências à família.
“Ilustre economista, gestor bancário, governante e cidadão civicamente empenhado, João Salgueiro deixa uma marca indelével na sociedade portuguesa, cujo desenvolvimento sempre norteou a sua ação”, pode ler-se na nota.
Presidente da Associação Portuguesa de Bancos, após alterações aos estatutos que permitiram que o líder não fosse um banqueiro, João Salgueiro foi ainda vice-presidente do Conselho Económico e Social.
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O homem que “inesperadamente” não ganhou a Cavaco
Américo Tomás, Presidente da República, e João Salgueiro, Subsecretário de Estado do Planeamento Económico
Francisco Pinto Balsemão, Primeiro-Ministro, reunido com Mota Amaral, João Salgueiro, Conceição e Silva
João Salgueiro, Ministro de Estado e das Finanças e do Plano, Mário Tomé e Carlos Brito durante a discussão
João Salgueiro, Presidente Nacional da Juventude Católica e assistente no ISCEF, com o jornalista do
Artur Cassiano